Lições de pai para filho – O bloco de papel vegetal

Jacinto Ferreira - Lições de pai para filho

Hoje foi dia de materializar algumas lições de pai para filho. Lições que o meu pai me dava da sua forma única e absolutamente genial e que hoje passo para o meu filho da melhor forma que sei.

O meu pai era uma pessoa muito peculiar para a época, sobretudo para o meio onde vivia e trabalhava. Aquilo que começa a tornar-se moda agora era o normal para ele. Lia todos os dias, praticava Yôga todos os dias, tinha um extremo cuidado com a sua alimentação todos os dias e dava o seu melhor todos os dias. Acredito que é possível que este estilo de vida não te impressione muito pois certamente já viste, conheces ou talvez até sejas uma pessoa assim, mas naquela época as coisas eram bem diferentes.

Naquela altura e no meio onde vivíamos os homens não liam, no máximo liam a Bola ou o Record. Desenvolvimento Pessoal era um conceito totalmente estranho para a esmagadora maioria das pessoas. Yôga era Ioga, uma actividade que quase ninguém conhecia e muito menos praticava, portanto ele praticava em casa sozinho.  A moda do estilo de vida activo e saudável que hoje assistimos era, na naquela época, coisa de maricas, pois macho que é macho comia e bebia, quanto mais melhor e às vezes até cair.

A única loja de alimentação integral, suplementos, livros sobre esses temas, etc. ficava em Lisboa onde uma elite do país inteiro (à qual ele claramente não pertencia) se deslocava propositadamente para fazer as suas compras no Celeiro da Baixa. Um verdadeiro oásis em Portugal e uma das maiores lojas do género na Europa daquela época.

Dar o seu melhor era algo muito mal visto.

 

Vinha-se de uma revolução e o que a maioria das pessoas interiorizou dessa revolução não foi propriamente a responsabilidade que essa liberdade te dá. Foi mais que os ricos são uns bandidos, os pobres são uns coitadinhos e como tal alguém tem de cuidar deles. Os sindicatos tinham uma força enorme e não era bem visto quem trabalhasse muito e muito menso que “desse o seu melhor”, pois isso demonstraria que a maioria das pessoas trabalhavam realmente pouco e faziam-no sem interesse, pelo que trabalhar muito e bem não era bem visto pela classe operária.

O meu pai era comunista, mas dizia que o comunismo era, por enquanto, uma utopia porque a maioria das pessoas não tinham o desenvolvimento pessoal suficiente para serem comunistas. Ele defendia que era necessário uma elevação da consciência para se ser comunista, para receber em função das suas necessidades e não do seu trabalho. Como essa consciência não existia as pessoas não estavam dispostas a estudar e trabalhar muito e receber menos que uma pessoa que trabalhasse o mesmo mas por ter mais um filho, ou outro tipo de necessidade recebece mais. O  meu pai defendia que as pessoas aproveitavam a ideologia e diziam-se comunista para assim trabalharem o mínimo possível e aumentar as suas necessidades para que pudessem obter um maior suporte dos Estado.

Entrou aos dezasseis anos numa das maiores e mais exigentes empresas nacionais da altura para limpar retretes e saiu de lá a comandar uma secção com mais de 200 pessoas, função essa que só era dada a engenheiros e ele apenas tinha a quarta classe. Feito ímpar na época, sobretudo numa empresa dirigida por militares.

Quando eu andava a estudar tive sempre a clara noção que os meus pais faziam um enorme esforço para que isso acontecesse, pois o meu pai fazia questão que eu percebesse que ele fazia enormes sacrifícios em prol da educação dos filhos e fazia-o de uma forma genial.

Não escondia nada para eu não perceber que fazia sacrifícios, mas também não me culpabilizada pelos mesmos. Deixava claro que os fazia e que fazia-os com gosto, apenas me pedia que tivesse isso em atenção nas escolhas que diariamente fizesse.

Ainda me lembro quando na minha adolescência, a moda era ter umas calças da Levi’s, Chevignon, ou DISEL ele fez-me ver que haviam calças na feira à venda, umas sem marca e outras um pouco mais caras pois eram contrafacções das calças de marca. Deu-me o dinheiro para comprar umas calças sem marca pois a sua obrigação era dar-me o que vestir, a partir daí era uma escolha minha.

O meu pai percebeu que eu não queria apenas umas calças, o que eu queria era pertencer a um mundo ao qual eu não pertencia e quase todos rapazes da minha escola também queriam pertencer.

 

O interessante foi que ele não me desmotivou, não disse que aquele não era o meu mundo, nem me atacou com frases do género «ando eu a fazer sacrifícios para tu quereres andar a deitar dinheiro fora numas calças para te armares em miúdo riquinho». Ele apenas me alertou para o facto de que o dinheiro que me dava era o suficiente para comprar umas calças para andar vestido, mas não dava para comprar as calças que eu queria. Ele pagar-me-ia roupa para eu vestir mas o preço pelo sentimento de pertença e de ascensão teria de ser eu a pagá-lo, não ele.

Alertou-me apenas para o facto que a roupa contrafeita que também era vendida na feira era apenas uma imitação daquilo que eu realmente queria, pelo que caso eu fizesse o que a maioria das pessoas faziam, que era comprar uma imitação, então tudo o que eu iria obter com essa roupa era uma imitação/ilusão das sensações e sentimentos que pretendia obter.

Então se eu quisesse ter essas satisfações, precisava encontrar uma solução honesta para arranjar o dinheiro que faltava para as comprar.

Este seu posicionamento teve um profundo impacto em mim, pois fui compreendendo que o sentimento de pertença tinha um preço e esse preço era mais caro do que a satisfação que o sentimento me dava.

 

Este ensinamento e experiência fez-me perder o interesse em ser aceite ou querer pertencer a um grupo. Percebi que não justificava o preço a pagar e, com o tempo, percebi também que não ter interesse em ser aceite dava-me a liberdade para ser o que quisesse, pois como não tinha a necessidade de ser aceite, a opinião que as outras pessoa tivessem sobre mim era-me indiferente.

Olhando para trás acredito que, a par da resiliência, a necessidade quase inexistente de aceitação ou pertença a um grupo é um dos meus maiores pontos fortes.

Quando terminei o 12º ano pretendia tirar uma licenciatura em Marketing mas na altura só o ensino privado é que dispunha essa opção, o público só tinha cursos de bacharel e naquela altura os bacharelados eram de três anos e as licenciaturas de cinco anos. Como a licenciatura dar-me-ia um valor adicional ele voltou a fazer um enorme sacrifício para que eu estudasse no privado. O acordo era muito simples, eu tinha cinco anos para fazer o curso e todas as disciplinas que chumbasse e tivesse de ir a exame em Setembro, teria de ser eu a pagar esses exames.

A minha adaptação ao mundo universitário foi para mim muito difícil.

 

Os primeiros dois anos foram mesmo horríveis pois não era nada fácil ser o menino pobre numa faculdade na Lapa. No primeiro ano chumbei a metade das disciplinas e apesar de ser pacífico que seria eu que iria pagar todos esses exames, calmamente me disse que não me estava a ver assim tão interessado no curso e tendo em consideração os meus resultados, perguntou-me se fazia sentido todo aquele esforço que estava a fazer. Explicou-me que não havia mal nenhum em abandonar o curso pois nem toda a gente tem de ser doutor.

Aquela conversa puramente factual e sem grandes julgamentos fez com que eu lhe respondesse que iria valer a pena todo o esforço que tinha feito até agora, bem como o esforço que iria continuar a fazer pois eu iria terminar o curso em cinco anos. Passei o Verão inteiro a estudar e o ano seguinte foi horrível para mim, mas dei o meu melhor nos estudos e percebi que teria de fortalecer a minha mentalidade e a minha forma de ser. Por isso, agarrei-me aos seus livros de desenvolvimento pessoal do meu pai e trabalhei muito em mim.

O terceiro ano foi ao ano da transformação e no quarto e quinto ano tornei-me numa pessoa bastante popular e respeitada na faculdade, sempre sem nunca me associar a nenhum dos inúmeros grupos que existiam nem deixar de ser eu próprio. Apesar de com muitos exames em Setembro, pagos com o dinheiro que ganhava como Instrutor de Musculação, consegui terminar o curso em cinco anos, onde os primeiros dois anos e meio foram horriveis e os ultimos dois anos e meio foram extremamente divertidos para mim.

Completei o meu período académico honrando o esforço que o meu pai fez para que isso acontecesse. E o meu também.

Apesar de ser sido um adolescente muito irreverente e maroto, tive sempre a consciência do esforço que o meu pai fazia para que eu e a minha irmã pudéssemos estudar. Recordo-me perfeitamente de há cerca de trinta anos atrás ter de comprar um bloco de papel vegetal. Este bloco custou 285 escudos, equivalente a €1,5 nos dias de hoje, mas há mais de trinta anos atrás 285 escudos por um bloco de folhas era pornografiacamente caro, mas como era obrigatório para as aulas de Educação Visual, tivemos de comprá-lo.

Nunca me disseram nada sobre o bloco mas ao ver o preço percebi que tinha sido caríssimo e como tal pensava sempre duas vezes antes de usar uma folha. Como o papel vegetal só foi necessário para um período, terminei o ano com o bloco quase novo e apesar de ter cerca de dez anos lembro-me de o ter guardado com muito cuidado pois talvez pudesse voltar a ser útil um dia e os meus pais não teriam de dar novamente 285 escudos por um bloco. Se nunca mais fosse preciso, apesar de ter cerca de dez anos, pensei «Se nunca o usar, fica para o meu filho.»

Hoje foi o primeiro dia do quarto ano do meu filho e…

Na lista de material estava um bloco de papel vegetal.

Hoje Pai, o teu neto levou para a escola o bloco de papel vegetal que com tanto esforço tu e a mãe compraram para mim há mais de 30 anos.

Amor de Pai Bloco de papel vegetal esquiço

Felizmente, graças a todo o esforço dos meus pais e tudo o que aprendi com o meu pai, hoje eu posso comprar todos os blocos novos de papel vegetal que o meu filho precisar, mesmo que este material continue a ter um valor relativamente elevado para um simples bloco de papel e hoje custe em média €5, mas nenhum outro bloco de papel vegetal chegará sequer perto do valor incalculável que este tem agora. Porque este carrega uma história. História essa que é claro que contei ao meu filho e ele ficou feliz por puder levar para a escola o bloco que era do pai e que o avô que ele nunca conheceu mas sempre admirou comprou com tanto esforço.

O Bloco de papel vegetal do meu filho é único, especial e muito valioso e ele sabe e valoriza isso.

Esta foi a minha contribuição de hoje para a Comunidade Pais Mais Ligados, agora quero ver a tua! Aproveita este artigo para manifestares a tua opinião ou até mesmo para abrires um debate sobre o tema. Se este artigo fez sentido para ti e achares que possa ajudar alguém, por favor partilha.

Com amor,

António

Gostou deste artigo? Então comente, partilhe e seja o primeiro a receber todos os artigos da comunidade Pais mais Ligados, inscreva-se com o seu nome e e-mail para receber todos os artigos e novidades da comunidade.

Deixe seu comentário, dúvida ou sugestão

Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.